
O autor da ação solicita uma compensação correspondente a 10% do montante transferido, o que equivale a aproximadamente R$ 13 milhões.
No conto “A Carteira”, Machado de Assis retrata o dilema moral de Honório, um advogado em dificuldades financeiras que decide devolver uma carteira recheada de dinheiro ao seu legítimo dono, Gustavo, um amigo próximo. No entanto, seu ato de honestidade é recebido com ingratidão e desconfiança.
A realidade, por vezes, se assemelha à ficção – ou será o contrário? Em 2023, um motorista autônomo de Palmas/TO vivenciou uma situação semelhante, mas com um desfecho distinto. Após receber por engano uma transferência bancária de R$ 131 milhões, ele prontamente devolveu o valor à instituição financeira, mas decidiu exigir uma recompensa pelo ato.
Na ação judicial, o motorista pleiteia uma compensação de 10% do montante devolvido, o que equivale a aproximadamente R$ 13 milhões. Ele alega que o banco não demonstrou qualquer gratidão pelo reembolso da quantia e que o gerente da instituição chegou a ameaçá-lo, exigindo a devolução imediata do dinheiro.
Além disso, afirma que, após a transferência equivocada, sua conta bancária foi automaticamente migrada para a categoria VIP, sem seu consentimento, acarretando uma cobrança mensal de R$ 70. O erro, segundo ele, teve um impacto significativo em sua vida, tornando-o alvo da imprensa, o que resultou em desconforto e forte pressão psicológica.
Diante disso, além da recompensa financeira, ele requer indenização por danos morais no valor de R$ 150 mil, alegando que sua exposição pública lhe causou transtornos significativos.
Direito à Recompensa no Código Civil
A legislação brasileira aborda a questão da descoberta no artigo 1.233 do Código Civil, determinando os direitos de quem encontra um bem sem proprietário conhecido. Segundo a norma, o descobridor deve entregar o objeto à autoridade competente, que providenciará sua destinação legal. Caso não haja reivindicação dentro do prazo estabelecido, o descobridor pode ser reconhecido como proprietário do bem.
O Código também diferencia a descoberta do achado de tesouro:
- Achado de tesouro (art. 1.264): refere-se a bens de valor escondidos ou enterrados, cujo dono é desconhecido. Nesse caso, o descobridor divide o valor com o proprietário do imóvel onde o bem foi encontrado.
- Descoberta (art. 1.233): trata de bens sem proprietário aparente, sem relação com tesouros ocultos.
Já o artigo 1.234 do Código Civil prevê que o descobridor tem direito a uma recompensa mínima de 5% do valor do bem encontrado, a ser paga pelo proprietário ou pela pessoa que reivindicar a posse.
Na ação movida pelo motorista, sua defesa sustenta o direito à recompensa com base em analogia tecnológica, argumentando que a quantia transferida para sua conta poderia ser considerada um “achado”, ainda que em ambiente virtual. O advogado do autor enfatiza que o Código Civil, promulgado em 2002, não contemplava avanços tecnológicos capazes de gerar situações como essa.
Casos Semelhantes na Justiça
Dois processos sobre pessoas que encontraram bens de valor e buscaram recompensas chamaram a atenção do STJ e do TJ/SP.
1. O quadro perdido do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
A 2ª Turma do STJ negou indenização a um trabalhador que solicitava recompensa por descobrir uma obra de arte desaparecida no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A pintura, intitulada “A Poesia e o Amor Afastando a Virtude do Vício”, foi criada por Eliseu Visconti e estava sumida desde a década de 1930.
O trabalhador alegou que, durante as obras de restauração do teatro, encontrou a tela em um espaço oculto do edifício, utilizando seu celular como lanterna para registrar o achado. A descoberta foi amplamente divulgada pela mídia, e especialistas estimaram o valor da obra entre R$ 40 e R$ 60 milhões.
Com base nisso, ele solicitou 5% do valor da pintura como recompensa, argumentando que o quadro estava “perdido” e que ele assumiu riscos ao encontrá-lo. No entanto, a ação foi julgada improcedente em todas as instâncias.
O relator do recurso especial, ministro Humberto Martins, enfatizou que a obra já pertencia ao Theatro Municipal, não sendo um bem sem dono. Além disso, destacou que não foi o trabalhador quem “descobriu” a tela, mas sim a própria equipe de restauração do teatro.
Com base nesse entendimento, o STJ concluiu que a recompensa não era devida.
2. Os quadros descartados na USP
Outro caso judicial envolveu um marceneiro que, em 2011, encontrou 15 quadros descartados no lixo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Inicialmente, ele questionou funcionários sobre o destino das obras e, sem obter resposta, decidiu guardá-las no local por alguns meses. Depois, levou os quadros para sua casa. A questão foi parar na Justiça, e o marceneiro buscou reconhecimento legal sobre a posse das obras.
O caso do motorista de Palmas/TO levanta novos debates jurídicos sobre o conceito de achado e descoberta no ambiente digital, além da possibilidade de analogia com o Código Civil. A decisão do Judiciário poderá abrir precedente para futuras disputas envolvendo erros bancários e a eventual obrigação de recompensa a quem devolve valores recebidos indevidamente.
Embora não tivessem um grande valor financeiro, já que a maioria eram reproduções, os quadros incluíam nomes renomados, como “Ensaio de Ballet”, de Edgar Degas (1834-1917), uma ilustração do cartunista paulistano Belmonte (1896-1947), além de obras de artistas franceses como Maurice Utrillo e Maurice de Vlaminck.
As peças permaneceram decorando a sala do trabalhador até que a Universidade instaurou uma sindicância e solicitou formalmente a devolução das obras.
Diante da recusa do trabalhador, a instituição ingressou com uma ação judicial. Em 2016, o juiz Luis Manuel Fonseca Pires, da 3ª Vara de Fazenda Pública do TJ/SP, determinou que os quadros fossem restituídos à Universidade, sem qualquer direito a compensação financeira ao trabalhador.
fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/423338/banco-transfere-r-131-mi-errado-cliente-devolve-e-cobra-recompensa